1281 Por uma cultura do desenvolvimento

Que dizer do crescimento econômico, mesmo forte, que se dá aprofundando as desigualdades sociais? Foi o caso do “milagre brasileiro” na época dos generais e é hoje o caso da China, à deriva rumo a um autoritarismo pós-socialista, e, eu diria, protocapitalista. Penso que esse paradigma profundamente perverso em termos sociais, e por isso mesmo indesejável, acabará por implodir, vítima das tensões políticas que provoca e que o levarão a se afundar no autoritarismo e depois interromper a escalada. (Ignacy Sachs, A Terceira Margem, Em Busca do Ecodesenvolvimento, 2009)
O final do “breve Século 20” foi um período caracterizado por graves crises econômicas e sociais, o que leva a uma necessária e cada vez mais urgente busca de uma “cultura do desenvolvimento”, como coloca Ignacy Sachs . Nos anos 1980-1990, o desemprego, a informalidade, a precarização das relações de trabalho, a exploração de crianças e de adolescentes, a violência e outras questões sociais marcariam a vida de milhões de pessoas nas pequenas, médias e grandes cidades. Tratava-se, como mostra Eric Hobsbawm em seu livro Era dos Extremos (1995), de um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos.
A primeira grande transformação: o mundo tinha deixado de ser eurocêntrico, as indústrias, em que a Europa fora pioneira, migravam para outras partes, as “grandes potências” haviam desaparecido. A segunda, e não menos importante: o globo que fora muito mais uma unidade operacional entre 1914 e 1990, passa a ser a unidade operacional básica, para muitos propósitos, sobretudo econômicos. O estágio alcançado na década de 1990 na construção da ‘aldeia global’ – expressão cunhada na década de 1960 por McLuhan, já havia transformado não apenas certas atividades econômicas e técnicas e as operações da ciência, como ainda importantes aspectos da vida privada, sobretudo devido à inimaginável aceleração das comunicações e dos transportes. A terceira transformação, considerada pelo autor a mais perturbadora, foi a desintegração de velhos padrões de relacionamento social e humano e com ela a quebra dos elos entre as gerações, quer dizer, entre passado e presente. Isso ficou mais evidente nos países mais desenvolvidos da versão ocidental do capitalismo, onde predominara um individualismo absoluto. Porém, as mesmas tendências encontravam-se em outras partes do mundo.
O que vem ocorrendo desde essa época passou a se expressar no que se chamou de “invenção da política”, de acordo com Francisco de Oliveira, uma estratégia que procura manter o adversário nos limites do campo criado pela proposta/resposta, conferindo estabilidade ao campo político. O que Gramsci chamaria de capacidade de hegemonia, no sentido que obriga o adversário a jogar com as linguagens, situações, instituições e cultura inventadas, as quais se tornam assim, a cultura dominante.
No bojo dessa discussão estão questões de extrema relevância e que nos remete a uma simples e importante pergunta: que tipo de sociedade queremos. Nesse sentido, pode-se pensar no que coloca Boaventura de Sousa Santos como ponto de partida, ou seja: a necessidade das perguntas criativas para que possam ser encontradas respostas emancipadoras. Respostas que nem sempre estão nos centros de poder. Podem ser encontradas em outros espaços de debate, nas experiências cotidianas de pessoas simples.
E, a partir de um “olhar sociológico”, daqueles que realmente se interessam em tirar a venda dos olhos, lembrando, um autor um pouco esquecido, Wrigth Millls. E, aí sim, como coloca Mills, e, de outra forma, Sousa Santos, Norbert Elias, Bourdieu, é possível buscar os caminhos de análise, pensar em novo processo civilizatório.
É nesse caminho, considerando as grandes transformações científicas e tecnológicas, a “financeirização do capitalismo” e suas consequências para a vida social e política, que se propõe a reflexão e o debate de questões atuais retomando autores clássicos e contemporâneos.
É sobre as ruínas de alguns paradigmas, inclusive o social-democrata, um paradigma que entrou em crise ao renunciar a suas origens socialistas, que teremos de construir projetos novos e plurais, como afirma Ignacy Sachs.
Para debatê-los, precisamos de um conjunto de ideias que organize o quadro conceitual dessa discussão. Não digo que a teoria do desenvolvimento forneça resposta prontas, uma espécie de prêt-à-penser. Ao contrário, digo e repito: as ciências sociais, em particular no campo que aqui nos interessa, têm antes de tudo um papel heurístico. Servem para fazer as perguntas certas, para alimentar o debate de sociedade. As respostas, de seu lado, vêm da praxis política.
A partir daí, a cultura do desenvolvimento deveria se tornar um elemento do ensino, desde o colégio. (…) Celso Furtado tinha razão ao dizer que o desenvolvimento é um conceito cultural, na medida em que implica a invenção do futuro (Sachs, 2009, p. 352).
É importante lembrar, como o faz Sachs (2009, p. 353), que as perguntas, nada evidentes, nos levam ao fundo das coisas e exigem que sejam articuladas a partir de um quadro conceitual. Quanto às respostas, complementa o autor, dependerão das diferentes ecologias, do conjunto de valores e dos modos de vida. Uma busca que vai na direção apontada por Marx, de que os homens deviam tomar em mãos o seu futuro.
* Alba Regina Neves Ramos é colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre sustentabilidade. Professora titular da Universidade Salvador- Unifacs e integrante do novo time de colunistas fixos de Plurale. Doutora em Sociologia pela Universidade Université de Paris-III Sorbonne Nouvelle. Foi diretora do Centro de Pesquisas- CRH-UFBA. Coordenou a Pesquisa sobre o Trabalho Infantil na Bahia. Coordenou a Câmara de Ciências Humanas da Fapesb.
** Publicado originalmente no site da Plurale.