quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Linha de perigo Os cientistas querem saber por que as onças estão atacando seres humanos no Pantanal

Juliana Arini
National Geographic Brasil

A sombra de um tarumã em um barranco do rio Paraguai foi o local escolhido para camuflar a armadilha. A câmera trap, de disparo automático, ficou uma semana presa ao tronco da árvore para tentar solucionar um mistério: quantas onças-pintadas visitavam aquele ponto remoto do Pantanal no Mato Grosso?

A expectativa dos técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação, o ICMBio, órgão responsável pela fiscalização das terras protegidas nacionais, aumentou quando recuperaram a câmera e constataram que havia disparos - sinal de que a armadilha funcionara. Mas a cena que apareceu no visor da máquina trouxe tristeza a todos. Não era nenhum felino selvagem, e sim um homem e uma mulher acendendo uma vela, ajoelhados ao lado de um pequeno cruzeiro de frente para o rio. O casal visitava o lugar no qual o filho, o pescador Luiz Alex da Silva Lara, havia sido morto por uma onça, em 2008.

A morte de Alex foi a quebra de um tabu. Nas lendas de índios e ribeirinhos das florestas e dos sertões brasileiros, são muitas as histórias de homens mortos pelo maior felino das Américas, mas todas sem nenhum registro oficial, o que tornava o ataque fatal da onça-pintada algo mais próximo de um mito. O único caso que se conhecia datava da década de 1980, quando um menino de 8 anos morreu na Vila dos Engenheiros, a residência dos técnicos de uma mineradora em Carajás, no Pará. Aquela, porém, foi uma investida de onça-parda. A falta de registros de ataques também levava os pescadores a crer que as onças avistadas jamais iriam importuná-los nos acampamentos.

Alex foi surpreendido enquanto dormia em uma barraca. Ele acompanhava o pai, Alonso Silva, o mesmo senhor flagrado pela câmera trap e pescador profissional de iscas. No momento do ataque, o jovem estava sozinho. Há duas versões para a localização de Alonso: uma dá conta de que ele estava posicionado abaixo do barranco, limpando peixes às margens do rio, e outra de que ele estaria pescando iscas fora do acampamento e chegou de barco, em tempo de escutar um barulho e se deparar com um animal grande arrastando o filho. Daí em diante, o pai tentou, sem sucesso, espantar o bicho. Decidiu então pegar o barco e buscar socorro. Na lembrança de seu Alonso, eram duas onças. A perícia feita pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), ligado ao ICMBio, aponta que havia apenas um felino no local.

Foi o fim da coexistência pacífica entre as pessoas e as onças em Cáceres, no Mato Grosso, a 221 quilômetros de Cuiabá. Surgiram rumores de que alguém estaria matando os predadores. A carcaça de um animal sem cabeça, recolhida por fiscais meses depois, era uma das provas. As primeiras suspeitas recaíram logo no pai de Alex. "Ninguém pode acusar Alonso, pois muita gente ficou com medo. Pode ter sido qualquer um, até um dono de barco-hotel", diz o pescador João Alves. "Passamos a ter mais cuidado, e mais medo, pois onça tem muita. Parei de dormir no barranco. Só no rio, dentro do barco."

Localizada na vizinhança da fronteira com a Bolívia, Cáceres tem sua economia baseada na pecuária. No entanto, nos últimos anos, o turismo de pesca se tornou uma atividade rentável. A cidade chega a receber mais de 100 mil visitantes por ano, atraídos pela facilidade em fisgar peixes grandes, como pintado, dourado e pacu. Alex, o jovem morto pela onça, e seu pai, seu Alonso, trabalhavam como coletores de isca para abastecer os barcos de turistas.

Um segundo incidente envolvendo uma onça-pintada, em junho de 2010, ocorreu a menos de 50 quilômetros do ponto em que Alex faleceu e tornou real um pesadelo para empresários e autoridades locais. A vítima foi um turista em um barco-hotel durante uma pescaria. O bicho pulou do barranco para o barco onde estavam os viajantes e derrubou no rio o estudante João Vitor Brás, de 16 anos. Internado em coma, o jovem, por sorte, sobreviveu. "Nasci de novo", disse ele à imprensa na época.

As imagens das duas vítimas mostram a ferocidade e o estrago do bote desse felino. Em ambos os casos, os jovens tiveram a cabeça dilacerada e o corpo retalhado pelas garras dos animais. Maior carnívoro da fauna terrestre brasileira, a onça-pintada alimenta-se de 2 quilos de carne por dia quando em cativeiro. É um predador de topo de cadeia, ou seja, um caçador responsável por controlar a população de outros bichos, como capivaras e queixadas. E, diferentemente de seus parentes africanos e asiáticos, que matam suas vítimas por estrangulamento, o felino americano tem uma forma peculiar de aniquilar suas presas: com o poder de sua mandíbula, esmaga a base do crânio. "Em termos proporcionais, a mordida dela é mais forte que a do tigre e a do leão", explica Peter Crawshaw, pesquisador do Cenap. A diferença entre os casos do pescador Alex e de João Vitor é que, no segundo, o turista teve a sorte de cair no rio. Ele sobreviveu porque a onça não conseguiu usar toda a força para mordê-lo. "Com isso, João Vitor sofreu ‘apenas’ um traumatismo craniano", diz Crawshaw.



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